"Temos uma percepção errada do islã", diz Malga di Paula, consultora em "Salve Jorge"
Fabíola Ortiz
Do UOL, no Rio
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Eny Miranda/Divulgação
Malga di Paula na Capadócia, cenário usado por Gloria Perez para ambientar a novela "Salve Jorge" (2012)
A paixão pela Turquia transformou a vida de Malga Di Paula, 42 anos, viúva do humorista Chico Anysio. Tanto que foi ela que apresentou para Glória Perez o país muçulmano que é retratado em "Salve Jorge". Malga integrou a equipe de consultores da autora da novela e ajudou a criar alguns personagens da trama. “Hoje eu vejo esse trabalho como uma homenagem ao Chico. Ele sempre me apoiou, Chico foi meu cajado. Não existia o impossível para ele”, relembrou, em entrevista exclusiva ao UOL.
Eu brinco que a gente dá uma “aturcalhada” na novela. A história já está na cabeça da Glória, a gente coloca expressões e o comportamento
sobre ser consultora de "Salve Jorge"A empresária gaúcha, que se tornou uma “embaixadora cultural” da Turquia no Brasil depois de conhecer e se encantar pelo país, em 2007, acredita que existe "uma percepção errada do islã". "A Turquia é um país em que se respeita a liberdade de culto. É o país do Oriente mais tolerante, é a única democracia da região". Malga teve uma experiência de iluminação ao encontrar, na Capadócia, uma imagem preservada de São Jorge. A partir daí, decidiu lutar pela construção de um memorial para que "o mundo inteiro saiba que o santo nasceu na Capadócia". O monumento ainda está em construção. Para ela, São Jorge é mais que um mito, representa "a liberdade de culto, de expressão e a igualdade entre os povos". E ela vê intolerância no boicote de evangélicos à novela. “Falo abertamente, o bispo Macedo está intolerante”.
Sempre acompanhada de suas cadelas de estimação, Branca, da raça labrador, e Nina, uma maltês, Malga recebeu o UOL em seu apartamento, na Barra da Tijuca, para falar sobre a colaboração para a novela "Salve Jorge" e como tem superado a ausência do marido, morto em 23 de março de 2012.
Leia a seguir a entrevista com a viúva de Chico Anysio na íntegra:
UOL: Você tem uma história de carinho com a Turquia. De onde veio essa paixão pelo país?
Malga: Trabalhei durante 10 anos com spas e andava pelo mundo procurando tratamentos diferentes quando surgiu o interesse nos tradicionais banhos turcos. Meu sonho era ir para a Grécia e pensei em aproveitar para pesquisar na Turquia. Fui em 2007, e não sabia nada sobre a Turquia, quando cheguei em Istambul, uma grande surpresa. Achei a cidade linda, fiquei encantada com as pessoas, com a cultura e arquitetura. A Turquia é um país muçulmano e encontrei um país supereuropeizado, moderno e cosmopolita. A gente tem uma percepção errada do islã. Vi que o país estava cheio de oportunidades. Me encantei pelos têxteis, pelas obras de arte, pelos acessórios, roupas, de uma riqueza. Me apaixonei pelos azulejos de Iznik. Eu não parava de falar para o Chico da Turquia. Eu dizia para ele: “Um dia eu tenho que voltar para a Turquia”. E ele até falou: “Então, por que você não volta logo? Então, vá atrás das oportunidades”.
Malga visita locações de "Salve Jorge" na Turquia
Veja Álbum de fotos E como você se tornou praticamente uma “embaixadora cultural” da Turquia?
Queria divulgar a Turquia no Brasil. Considero o Brasil um exemplo para o Ocidente, pois somos um país tolerante e vi que a Turquia era o exemplo para o Oriente. É um país em que se respeita a liberdade de culto. A Turquia é o país do Oriente mais tolerante, é a única democracia da região. A ponte entre esses dois povos é São Jorge, a figura que mais representa a liberdade de culto, de expressão e a igualdade entre os povos. Montei a Serendipity em 2008, uma agência para intermediar negócios entre os dois países que se transformou numa agência de relações públicas e de viagens também. Era tão inusitado, uma brasileira querendo fazer negócios lá, que os turcos tinham curiosidade e todo mundo me recebia. Em 2009, a Turkish Airlines veio para o Brasil e meus amigos me apresentaram aos diretores da companhia. Falavam que eu era a brasileira que mais entendia de Turquia.
É bem legal quando vejo o personagem fazendo as coisas que a gente sugeria. Como a dançarina brasileira Clara Sussekind, que conheci lá e inspirou a personagem da Cleo Pires. A Clara está participando da novela também, ela faz uma cigana que vai ser professora de dança da Cleo
Você fala turco?
Hoje eu me defendo em turco, o turco é muito difícil. Eu sei muitas palavras de turco, mas não sei formar frases.
E a sua relação com São Jorge? Você já era devota do santo?
Gostava de São Jorge, mas não era devota. Nasci numa família católica, mas me considero uma pessoa agnóstica e de todas as religiões, eu acredito no sobrenatural. Achava que a Capadócia era um lugar lendário. A Capadócia era povoada por cristãos ortodoxos descendentes de gregos, que na República, em 1923, quando acabou com a guerra entre Turquia e Grécia, os gregos tiveram que abandonar suas casas. São Jorge era um santo importante até o final do século passado e, há quase 100 anos, a região foi povoada pelos muçulmanos. Quando cheguei na Capadócia, ninguém sabia de São Jorge. São Basílio era o santo que mais falava. Fui a um museu a céu aberto de Göreme onde tinha uma imagem de São Jorge quase apagada. Quando entrei numa segunda igreja com uma imagem mais preservada, foi nesse momento que a minha vida mudou. Quando entrei ali, vivi uma experiência sobrenatural, olhei para aquela imagem e fui tomada por uma comoção tão grande, uma experiência visceral, tive a exata sensação de que estava reencontrando alguém, um amigo que há muito tempo eu não via. Fiquei tão emocionada que as lágrimas corriam.
Essa experiência mudou a sua vida?
Tinha alguma coisa dentro daquela caverna que eu não conseguia sair. Nessa hora eu tive uma ideia, a primeira coisa que veio na minha cabeça era que eu iria construir um memorial para São Jorge na Capadócia para que o mundo inteiro saiba que ele nasceu aqui. O memorial ainda não esta pronto, não dei continuidade por causa da doença do Chico. Parei tudo para cuidar do Chico. Comecei a pesquisar mais sobre sua história e, realmente, não se sabia se ele existiu. Vi que São Jorge é o santo mais eclético do cristianismo, mais querido do mundo cristão, sincretizado em várias culturas e credos. Hoje eu acredito realmente que ele existiu por razões históricas e por toda a pesquisa que fiz. Eu vou até lançar um livro que está na ponta da agulha.
Em seu livro você vai relatar as experiências vividas neste período em que descobriu a Turquia e durante a doença do Chico Anysio?
É um mix de romance, autobiografia e fé. O livro fala de mim, das minhas origens, eu sou do Vêneto (nordeste da Itália) mas descobri que, no passado essa região foi colonizada pelos habitantes da Anatólia (na Turquia). No fundo, acho que tenho uns genes que vem de lá. No livro, eu conto um pouco da minha história com o Chico. São Jorge tem muito a ver com esse momento terrível que foi. Eu conto no livro um pouco sobre a Turquia em si e a história de São Jorge pesquisada historicamente como ninguém contou no país ainda. Eu escrevo de São Jorge que se conhece no Ocidente, mas que veio do Oriente. Trago no livro lendas importantes. Quero ver se consigo lançar no dia de São Jorge ano que vem, dia 23 de abril.
Na doença do Chico Anysio, você se apegou a São Jorge?
Não sei se foi São Jorge que me deu uma mãozinha ou se foi a minha fé tão grande que eu tinha nele. Naquela hora de desespero, eu tinha que me apegar a alguma coisa. Em novembro de 2010, o Chico ficou doente, foi o primeiro problema sério que ele teve e ficou internado até março de 2011 no hospital. Fechei meu escritório e apartamento que tinha montado em São Paulo e vim embora para cuidar dele. Em junho de 2011, o Chico já estava caminhando e tinha voltado a trabalhar, mas teve um problema na coluna. Ele sofreu muito e teve que voltar a andar na cadeira de rodas. Ele sofreu muito com várias lesões e fraturas na coluna, foi isso que acabou matando o Chico. Ele não conseguia mais fazer a fisioterapia respiratória.
Como você apresentou a Turquia para a Glória Perez [autora da nova novela da Globo “Salve Jorge”]?
Desde a primeira vez que fui à Capadócia, vi um cenário e pensei na Glória Perez. Aquele cenário é fantástico, muito cenográfico. Seria perfeito para a Glória fazer uma novela. Liguei para ela em 2009 e falei: “Te convido para conhecer a Turquia e gostaria muito de te apresentar o país”. Ela disse que tinha curiosidade, mas não conhecia.
Como você colaborou na novela?
Em julho de 2011, a Glória [Perez] me chamou para conversar e dizer que a novela ia acontecer. Ela tinha decidido fazer sobre a Turquia e me chamou para trabalhar com ela, mas o Chico estava doente. Eu também adoraria e quem acabou fazendo que isso acontecesse foi o próprio Chico. Ele me apoiou e falava: “Você tem que fazer, é muito importante para você, vá fazer”. Em setembro de 2011, levei a Gloria e uma equipe da Globo para apresentar a Turquia a eles, foram 20 dias de viagem. Fui contratada como pesquisadora e lá apresentei as pessoas que eu conhecia, levei a Gloria para conhecer uma família rica que os personagens da Zezé Polessa e do Antonio Calloni foram inspirados. Fomos para a Capadócia e apresentei a cultura de aldeia que ainda existe no interior. Foi lá que a Gloria viu as pessoas fazendo o pão na comunidade, o cenário da aldeia Guzelos. A Gloria faz uma homenagem ao país e quer mostrar a Turquia como um todo, como por exemplo, a tradição da garrafa (que é colocada em cima do telhado das casas para as moças que querem se casar) é do sul da Turquia. Fomos pesquisando coisas que existiam nos mais diferentes lugares da Turquia. A Glória é brilhante e costurou tudo.
Que outros personagens fizeram parte da pesquisa?
Quando a Glória estava escrevendo, ela me procurava muito no começo. A gente deu a cara de todos os personagens e a personalidade deles. Participei de tudo isso. É bem legal quando vejo o personagem fazendo as coisas que a gente sugeria. Como a dançarina brasileira Clara Sussekind, que conheci lá e inspirou a personagem da Cleo Pires. A Clara está participando da novela também, ela faz uma cigana que vai ser professora de dança da Cleo.
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Bianca (Cleo Pires), Mustafa (Antonio Calloni) e Berna (Zezé Polessa), inspirados em uma dançarina e um casal apresentados por Malga para Gloria
O que é imperdível, na sua opinião, da cultura turca e que pode ser mostrado na novela?
Em Istambul, você encontra um pouquinho de cada lugar da Turquia, é a cidade mais rica culturalmente que não existe em outro lugar do mundo. Você encontra coisas do império helênico, do império romano, do império bizantino, do império otomano e encontra a Turquia moderna. O que não pode perder: a igreja de Santa Sofia (Hagia Sofia ou Ayasofya), o edifício mais antigo em Istambul. A igreja foi construída no século VII e, quando os turcos conquistaram, a transformaram numa mesquita e agora ela é um museu. Durante mil anos foi o maior edifício do mundo. Em frente à Santa Sofia, tem a Mesquita Azul. O Palácio de Topkapi é onde viveram os sultões no império otomano. Tudo fica no centro histórico onde era Constantinopla. O passeio pelo estreito de Bósforo, que comunica o mar negro, o mediterrâneo e também o mar de Mármara, não pode deixar de fazer. O Bósforo tem 14 quilômetros e é o caminho que conecta o Oriente ao Ocidente. Além de o Grand Bazaar e o bazar das especiarias. Na Capadócia, tem o passeio de balão. São centenas de balões que sobem ao mesmo tempo e é feito no raiar do sol, é uma energia incrível. Tem também as cidades subterrâneas e o museu de Göreme onde está a igreja de São Jorge.
Faz oito meses que Chico Anysio faleceu... Como você está hoje?
O Chico sempre me apoiou, ele foi a minha vida nos últimos 14 anos. O Chico foi a minha força, o meu melhor amigo, o meu amor. Eu aprendi tanto com o Chico. Ele foi meu companheirão, meu apoio, meu cajado. Ele nunca deixou de me apoiar em tudo o que eu fiz. Eu ouvia muito os conselhos dele. Não existia o impossível para ele, assim como não existe impossível para mim. E a gente se entendia tão perfeitamente, a gente se completava.
O seu trabalho como consultora é uma forma de superar o luto?
Vejo esse trabalho como uma homenagem ao Chico porque se não fosse o apoio dele sempre, não teria acontecido. Hoje eu estou bem mais forte, paro e penso como o tempo realmente é o remédio. A cada dia que passa você consegue ver a morte por um ângulo um pouco diferente. A saudade aumenta, mas a compreensão da finitude da nossa vida aumenta.
Tem dias que eu não levanto da cama, eu não estou todo dia bem. Há dias que eu estou mundo mal
Você mantém a memória do Chico Anysio muito viva ...
Tem dias que eu não levanto da cama, eu não estou todo dia bem. Há dias que eu estou mundo mal. A Glória Perez superentende quando eu não estou legal, se tem alguém que entende de perdas é a Glória. Quando eu estou trabalhando, me distrai... eu paro por alguns minutos de pensar que aqui em casa, o Chico não existe mais. Quando volto para casa, toda vez é muito dolorido, eu sei que vou chegar aqui e vou estar sozinha. Eu lembro de quando eu abria a porta e ele falava: “Eeeiii”. Ele estava sempre com braços abertos me esperando. Eu sempre ganhava um superabraço e um superbeijo. O Chico sempre tinha uma coisa para ler para mim, uma música que tinha escrito para me mostrar. Ele tinha coisas do campeonato brasileiro pra me contar e eu não entendia absolutamente nada, mas me contava tão sério e eu fazia de conta que entendia tudo. Tudo está do jeito que ele deixou até hoje. As pessoas dizem que eu deveria já ter tirado tudo para sofrer menos. Enquanto eu ficar nesse apartamento, não posso ver esse espaço vazio.
Ajudar na novela “Salve Jorge” é um alento para a sua vida?
Sim, o trabalho maior foi feito, agora a Glória escreve a história e quando tem alguma situação na Turquia, ela me chama. Eu brinco que a gente dá uma “aturcalhada” na novela. A história já está na cabeça da Glória, a gente coloca expressões e o comportamento. Hoje eu tenho o instituto (Chico Anysio, que apoia pesquisas no tratamento do enfisema pulmonar) que agora estou voltando a me dedicar. É uma homenagem minha para o Chico. Tenho a associação Jorge da Capadócia, um projeto social com crianças de uma comunidade perto de Madureira que se chama Pequenos Guerreiros. Eu também cuido de mulheres do interior da Capadócia. São várias coisas que estou trabalhando e tenho quase todo o meu tempo ocupado.
Qual a sua opinião sobre o boicote de evangélicos à novela da Globo, por tratar do culto a São Jorge?
Vejo isso como intolerância. Não sou muçulmana, hindu ou budista e não tenho problema algum em assistir um filme que trate deste assunto. É uma fé e uma crença diferente, só isso, você não assiste se não quiser, mas boicotar e fazer uma campanha contra é intolerância. A minha missão nessa vida é trabalhar a favor da liberdade de culto e de expressão e da igualdade entre as pessoas. É uma pena que eles (os evangélicos) percam a oportunidade de conhecer parte da história da cultura brasileira. No país, 70 milhões de pessoas são seguidores de São Jorge, uma crença de mais da metade de brasileiros. A novela trata de uma questão de fé, assim como o “Clone” mostrava questões ligadas ao islã, ou “Caminho das Índias” que mostrava o hinduísmo. Eu falo abertamente, o bispo Macedo está intolerante. Isso é perigoso, estimula a violência e o preconceito. A origem do protestantismo de Martinho Lutero é justamente para que as pessoas tivessem liberdade de culto e o que os evangélicos estão fazendo agora é o caminho contrário do protestantismo em sua origem.