Áudio da Copa já espanta tanto quanto imagens

Ricardo Feltrin

Ricardo Feltrin

Pelo menos desde o final dos anos 80 os telespectadores do mundo todo têm sido presenteados pela Fifa com uma variedade impressionante de imagens belíssimas durante as Copas. Isso vale tanto para a transmissão das partidas, como as festas nas arquibancadas.

O inegável talento, capacidade e bom gosto de editores de imagens, operadores, técnicos e, principalmente, câmeras, são o que há de mais verdadeiro na expressão "padrão Fifa" de qualidade.

O posicionamento e o ângulo das câmeras; a variação entre uma cena exibida em câmera lenta ou outra em alta definição e velocidade normal; ou uma cena de felicidade do técnico com seu pupilo, ou de dor de um jogador atingido na panturrilha, que ora são exibidas em close e ora de longa distância, são momentos que podem ser chamados devidamente com o clichê "colírio para os olhos".

Isso sem falar da beleza das imagens de alegria e festa das torcidas. Vá lá, mais especificamente, das torcedoras. Cada close numa holandesa escultural (com uma bandeirinha pintada na bochecha), ou numa brasileira sinuosa  (e de microshortinho) já equivalem a um suspiro e um "aiai".

Somos gratos, dona Fifa. Obrigado, senhor Jérôme "Chute no Traseiro" Valcke.

Dito isso, acrescentamos que as imagens têm um rival a altura neste 2014: o áudio. O som. A captação das frequências que saem do campo; seja do barulho da bola na trave ao apito do juiz; do "uff!" gemido pelo Messi durante uma entrada dura ao som da luva do goleiro Ochoa tirando a bola de Neymar de cima da linha do gol mexicano.

E o que dizer dos shows das torcidas? Simplesmente espectaculares o som e a equalização que vêm sendo captados de todas as arenas nesta Copa. É provável que nunca o mundo ouviu com tanta qualidade e variedade as frequências graves, médias e agudas exalando das arquibancadas --antes, durante o jogo ou nos intervalos.

Quem tiver a sorte de estar assistindo às partidas em TVs de boa qualidade já deve ter notado que quando as torcidas fazem a ôla é possível quase sentir o movimento da onda percorrendo todo o estádio via aparelho.

É praticamente possível ouvir a respiração coletiva num momento de tensão. E nem estamos falando aqui do tradicional "uuuuuuh!", quando uma bola passa raspando o travessão. Isso é o de menos. O espetáculo sonoro aqui é pulsação de cada arena como um coração humano. Um coração do tamanho de, digamos, umas 70 mil pessoas.

Nos shows musicais ao vivo as emissoras de TV ainda cometem muitos erros e fazem uma penca de bobagens.

Basta assistir ao Multishow, Bis ou outro canal musical para ouvir como, às vezes, algum cabeçudo esqueceu de incluir um instrumento da banda, ou o equalizou "invisível". Outras vezes, por medo de microfonias, o técnico só coloca um captador no bumbo, outro na caixa e dane-se se você gostaria de ouvir também algum prato da bateria. Isso quando o baixo não é engolido pela guitarra ou vocal. De fato é bem mais difícil equalizar frequências mais baixas que as altas.

Mas, no esporte, o padrão já é outro.

É difícil, talvez impossível, querer creditar a uma só pessoa no mundo o patamar atual atingido pelas transmissões em áudio dos estádios e eventos esportivos.

No Brasil, porém, é possível lembrar do saudoso Ely Coimbra (1942-98), durante as transmissões do "Futebol Dente de Leite", nos idos dos anos 70, erguendo seu microfone de campo sobre a cabeça, em direção às arquibancadas, sempre que um garotinho marcava gol.

Pouca gente entende que Ely estava, na prática, fazendo o papel de sonoplasta ou de técnico auxiliar de áudio. Como naquele século havia um ou, como diz Nelson Motta, "cerca de dois" canais em cada transmissão de futebol, ao erguer o microfone o repórter de campo Ely contava que o editor de som e imagem na cabine o notaria --e abriria o canal de seu microfone ao mesmo tempo que o grito de gol do também saudoso Sergio Baklanos (35-99).

Isso nem sempre era possível. Durante anos não havia muitos canais para usar. Se o narrador falava o repórter "baixava a orelha". Se o repórter pedia a palavra, o narrador ficava quietinho, afinal nem podia ser ouvido. Um terceiro repórter de campo, então, era mero coadjuvante que às vezes só era chamado no fim da partida, após as propagandas dos tênis Markerli, retentores Sabó ou amortecedores Cofap.

Isso não existe mais há muitos anos. Hoje a tecnologia permite uma fartura de canais, ondas e uma incrível subdivisão de frequências ao gosto do freguês --ou, no caso da Fifa, do vendedor. A entidade é dona de todos os direitos dessas frequências e os reivindica na Seção III da Lei Geral da Copa ("Da Captação de Imagem ou Sons, Radiodifusão e Acesso aos Locais Oficiais de Competição").

Espertamente, a entidade não explica e nem revela quantos microfones ou captadores internos ou externos está utilizando em cada arena, e tampouco abre a localização de nenhum.

Se não tem nenhum interesse em repassar seu know-how hoje, é certo que no passado a Fifa ensinou e aprendeu muito com a Globo, uma das pioneiras a ter espalhado microfones, equalizado frequências com esmero e distribuído canais por vários locais nos estádios, obtendo um verdadeiro ambiente.

Ambiente que no passado apenas completava a imagem, mas hoje já a rivaliza, e, às vezes, até a supera.

Ricardo Feltrin

Ricardo Feltrin é colunista do UOL desde 2004. Trabalhou por 21 anos no Grupo Folha, como repórter, editor e secretário de Redação, entre outros cargos.

UOL Cursos Online

Todos os cursos