Globo testa limites com deboche a evangélicos

Ricardo Feltrin

Ricardo Feltrin

Colunista do UOL
  • Reprodução/TV Globo

    "Tá no Ar" cria quadro com a "Galinha Preta Convertidinha"

    "Tá no Ar" cria quadro com a "Galinha Preta Convertidinha"

O segundo episódio da nova temporada de "Tá no Ar", na última quinta-feira (19), pode ser encarado de várias formas como um marco divisório por parte da Globo: nunca um programa da emissora debochou tanto de religiões e, especialmente, da figura dos evangélicos e seus pastores. 

O programa já havia mexido com religiões no ano passado, mas nunca de forma tão escrachada. A cena que certamente irá "causar" no mundo gospel foi o quadro da Galinha Preta Convertidinha, irmã do sucesso da primeira temporada, a Galinha Preta Pintadinha. Nesse quadro, criancinhas supostamente evangélicas estão assistindo à TV quando começa um comercial sobre o boneco da Convertidinha, agora à venda. Um pastor é representado como um pastor alemão (usando terno).

"Ir pro inferno é fogo/ A Verdade é Universal/ Cuidado com a Hora/ do Juízo Final", diz o jingle do "comercial" infantil. "Ela vai cantar bem alto no seu ouvido", continua o quadro sarcástico, enquanto as crianças imploram: "Ah, compra mãããe!!"

Então surge o pastor alemão pregando sob o tema do pintinho amarelinho. "Meu pastor é animadinho/ Canta e Dança de Montão/ De Montão/ Quando quer mais dinheirinho/ Compra um horário na televisão".

Mais direto, impossível.

Antes de mais nada, o programa mostra que a Globo segue um caminho sem volta quando realmente libera o programa de Marcelo Adnet, Marcio Melhem e Mauricio Farias para mexer com qualquer coisa, como nem mesmo no tempo de "TV Pirata". E isso está longe de ser algo ruim (lembrando sempre que este é um artigo opinativo).

No ano passado a mesma atração já havia ironizado católicos (com um rap) e os próprios umbandistas, provocando algum melindre.

A diferença, porém, está no tom, que dessa vez foi bem mais aberto (ou mais pesado). Se for para romper limites, a pergunta é se haverá, adiante, ironias tão fortes a respeito do padre Marcelo, um velho parceiro da Globo, ou mesmo sobre os sempre articulados judeus.

Afinal, é isso que há 18 anos ocorre com o desenho "South Park" (em cartaz no Comedy Central e MTV), que já ridicularizou ostensivamente a todo tipo de religião:

  • Evangélicos: Cartman decide ganhar um disco de platina, monta uma picareta banda gospel, explode de sucesso, mas fica furioso quando descobre que os evangélicos não têm disco de platina, apenas de "mirra";
  • Católicos: a cidade de South Park é alvo de um milagre, pois uma imagem da santa solta sangue pelo ânus; o papa Bento 16 conclui que uma mulher sangrar não é milagre, é algo normal; 
  • Judeus: piadas presentes em todos os episódios, já que Cartman é um assumido antissemita --embora nunca tenha se questionado, por exemplo, se seu próprio sobrenome não mostra que ele próprio provavelmente é judeu.

Apesar da subversão de "South Park", nem judeus, nem católicos ou evangélicos mundo afora jamais se organizaram de forma cabal para tentar tirar do desenho do ar, sob a acusação de blasfêmia.

No Brasil, porém, especialmente na TV, religião sempre foi tratada como um tabu.

Nesse sentido a Globo dá decididamente um passo à frente da autocensura. E não só em relação à religião. O "Tá no Ar" já tem ridicularizado outros programas e mesmo anunciantes da própria casa. 

Ontem, por exemplo, o programa abriu avisando que quem gosta de BBB não precisava se desesperar porque o reality continuava a ser exibido em outro canal.  

No passado a Globo já havia melindrado evangélicos com a polêmica série "Decadência", em 1995, que levou o bispo Edir Macedo a declarar a emissora como sua inimiga figadal. Mas, dessa vez, é humor, e não há ranço (embora muita gente possa questionar o bom gosto do humor). Como será a reação?

Em um país em que a corrupção é pornográfica, em que a moral é frouxa ao bel prazer dos interessados e onde as instituições estão em frangalhos (sem trocadilho com a galinha, han?), vai soar bem hipócrita querer acusar um programa de humor de ser o causador de todos os males.

Se o cidadão comum não é tratado nem sequer com respeito por um sistema absolutamente indecente, por que simplesmente fazer joça e causar riso poderia ser a origem da devassidão que grassa?

Mas, como este país é por vezes esquisito e muitas vezes hipócrita, o "Tá no Ar" deve causar forte reação. Especialmente se continuar a tripudiar da "sagrada religião".

Vamos ver apenas se o programa --e a Globo-- terão coragem de romper mais limites e provoquem, com o mesmo humor, interesses ainda maiores que apenas o dos evangélicos e espiritualistas. Os políticos e financeiros, por exemplo.

Ricardo Feltrin

Ricardo Feltrin é colunista do UOL desde 2004. Trabalhou por 21 anos no Grupo Folha, como repórter, editor e secretário de Redação, entre outros cargos.

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