Memória: "Fui dirigido por Carlos Manga, mas não apareci no comercial"

Ricardo Feltrin

Ricardo Feltrin

Colunista do UOL
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    1974 - O diretor Carlos Manga (à dir.) bate no ator Tarcísio Meira durante ensaio do filme "O Marginal"

    1974 - O diretor Carlos Manga (à dir.) bate no ator Tarcísio Meira durante ensaio do filme "O Marginal"

Em 1976, quando eu tinha 12 para 13 anos, fui chamado por uma agência infantil de São Caetano, a Pritt, para ser figurante de um comercial.
 
Eu e outros garotos da "Vila Paula", em São Caetano, sempre éramos chamados para comerciais e quem selecionava figurantes era a agência da Tia Irany. Meu avô, Antonio, era um figurante profissional e chegou a fazer uma ponta em "Dora Mundo" (1978).
 
Era divertido e ainda rendia um dinheirinho para nós moleques, que gastávamos tudo em tubaína e comer maria-mole (tanto açúcar obviamente me deixou hiperativo para sempre).
 
Uma bela tarde, em 76, um agente da Pritt apareceu em casa perguntando se eu queria fazer figuração naquela noite. Era pegar ou largar. Claro que sim! Ele avisou para eu dormir um pouco pois passaríamos a noite filmando. Obviamente fiquei excitado e não preguei o olho. Adorava aquilo.
 
Lá fui eu em uma caravana com vários ônibus, que levavam crianças, jovens e idosos, rumo a um cinema antigo no centro de São Paulo. Era lá que seria filmado o mais novo comercial do banco Itaú.
 
O tema do comercial era ousado: em plena vigência do chamado "jeitinho brasileiro" de Gerson, o banco faria uma campanha clamando pela volta do bom senso, da educação e o fim do maldito "jeitinho".
 
Quem dirigiu o comercial? Carlos Manga (1928-2015), que morreu nesta quinta-feira, no Rio.
 
Ele já era uma lenda, assim como Walter Clark, à época (mas ninguém sabia quem era Boni). Qualquer moleque televisivo como eu sabia quem era Manga desde os tempos da TV Record.
 
Fomos levados em grupos dos ônibus até a porta do cinema. E então eu o vi e nunca esqueci: a primeira celebridade que vi em carne e osso.
 
Lá estava Manga, sentado numa grua, olho fixo na câmera, se preparando para a filmagem. O cinema ainda estava exibindo a última sessão de "Xica da Silva" e a produção se apressava.
 
A gravação só começaria após terminar a sessão. Era por isso passaríamos a noite filmando.
 
Eu, malandro, tratei de dar um "jeitinho" de entrar no cinema sem que ninguém me visse. Quero dizer, achei que ninguém tinha visto.
 
Mal sentei na poltrona já apareceu na tela a espetacular Zezé Motta nuazinha (xica) da Silva.
 
Nem tive tempo de ficar excitadinho. Nem um minuto se passou e de repente acenderam todas as luzes da sala. Lá estava Manga, com seu bigode ameaçador, na porta da sala, ao lado de um funcionário do cinema. Ele berrou com calma: "Este filme não é para menor de idade e eu sei que tem um aqui. Saia agora para o filme continuar."
 
Claro, todo mundo na sala olhou para mim. Não sabia onde enfiar a cara. Me levantei e, olhando para o chão, deixei o cinema. Pensei que era o fim de minha carreira de figurante. Só que não.
 
A filmagem começou por volta da 0h.
 
A propaganda era assim: primeiro todos os figurantes se amontoavam em frente ao cinema e, ao grito de "Ação!" de Manga, todos devíamos correr para as catracas de forma desordenada, uns empurrando os outros ("sem machucar! sem machucar", berrava ele); todos querendo "levar vantagem" e passar na catraca primeiro.
 
Já havia feito uns três ou quatro "takes" quando parou, olhou o mar de figurantes e começou a nos mudar de posição.
 
Por exemplo: perto de mim havia um rapaz usando uma camiseta vermelha de manga longa e, ao lado dele, fazendo papel de sua namorada no comercial, estava uma garota também usando uma blusinha vermelha (era Marcia Ortega, a garota mais linda, espetacular e, aiai, a mais velha do ginásio Dom Benedito; minha musa da puberdade --e de metade de São Caetano, aliás).
 
Manga separou o casal e arrumou outro "namorado" para ela. Não acreditava que dois namorados saíssem ambos usando vermelho. Ele era assim detalhista. Isso me encantou.
 
Já passava das 3h30 quando se deu por satisfeito. Fomos mandados para o ônibus e disseram que poderíamos dormir um pouco, que logo mandariam umas marmitinhas e refrigerante e coisa e tal (outro atrativo para qualquer moleque figurante e comilão).
 
Eu não quis ficar no ônibus e acabei arrumando um cantinho na produção. Manga me viu de novo. "Não vai dormir, moleque? Tá pensando na Xica?" E todos os funcionários próximos a ele gargalharam. Fiquei completamente envergonhado. Mas o importante é que ele me deixou ficar lá quietinho.
 
Então ele começou a gravar a cena seguinte do comercial. Eu não podia acreditar no que estava vendo: de em imenso caminhão estacionado em frente ao cinema, começaram a descer vacas e mais vacas, bois e mais bois. Isso mesmo. Uns 20 animais. Todos amarrados e conduzidos por treinadores.
 
Manga amontou todas os animais na entrada do cinema e então gritou, juro por Deus, "AÇÃO!" --como se as vacas obedecessem.
 
Então os criadores soltaram os laços das vacas e, alguns, escondidos em meio aos animais, começaram a dar tapas e pancadinhas em seus quadris, obrigando todos a correr em direção às catracas.
 
Assim como fizera com nós humanos, Manga repetiu essa cena umas nove ou 10 vezes, até que o dia começou a clarear e ele teve de parar porque, no filme-propaganda, tudo deveria se passar num cinema à noite.
 
O piso da entrada do cinema ficou destruído pelos cascos. Uma catraca foi esmagada. As outras foram quebradas. Vi funcionários colocando as mãos nas cabeças, desesperados. Fomos todos embora.
 
Uns dois meses depois, eu vi o comercial pela primeira vez na TV. Pulei da poltrona.
 
Uma voz em off falava alguma coisa sobre a necessidade urgente de os brasileiros terem mais educação e respeito, enquanto a imagem mostrava a multidão, tentando atropelar uns aos outros.

Então cortava essa cena e entrava as imagens das vacas e bois também se atropelando, tentando entrar no cinema. A voz em off deixava uma mensagem do tipo "os mal educados se comportam como muares desgovernados". Ou algo assim, Achei aquilo fantástico e só aí entendi o que o diretor havia pensado antes de gravar.
 
Mais de 20 anos depois, em 1998, no lançamento de "Torre de Babel", no Projac, reencontrei Carlos Manga. Contei-lhe que ele já havia me dirigido e ele ficou bem curioso.
 
"Quando?"
 
Comecei a contar quando e qual foi o comercial. Ele abriu um sorriso imenso e olhou para Tarcísio:
 
"Esse comercial foi fantástico! Um tapa na cara de um povo grosseiro. Hoje eu não poderia fazer aquilo!"
 
Lembrei-lhe que eu também havia sido mal-educado, que invadira a sala de cinema escondido para ver "Xica da Silva", e lembrei que ele me fizera sair sob opróbrio público e com luzes acesas.
 
Então ele gargalhou: "Tudo bem, era a Zezé (Mota). Se eu fosse moleque, também entrava."

Conversamos muito naquela manhã (sim, os lançamentos da Globo eram sempre de manhã), principalmente sobre sua filha Paula, que estava se lançando cantora. Isso o fez simpatizar ainda mais comigo, algo ótimo para um então repórter novato na área de TV.
 
Quando me despedi de Manga, disse que só uma coisa havia me chateado muito naquele comercial. Surpreso, ele perguntou: "O quê, Ricardo?"

"Eu não apareci no seu comercial nem por um milésimo de segundo. Só valeu mesmo para ver a Zezé Motta pelada."

Ricardo Feltrin

Ricardo Feltrin é colunista do UOL desde 2004. Trabalhou por 21 anos no Grupo Folha, como repórter, editor e secretário de Redação, entre outros cargos.

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