Jorge Loredo era tão bom que até confundia amigos

Ricardo Feltrin

Ricardo Feltrin

Embora tenha fiado nacionalmente famoso por apenas um único personagem, o Zé Bonitinho, é injusto avaliar seu talento apenas por esse personagem. Loredo era muito mais que apenas um humorista. Era um ator completo e encarnava tão bem os personagens que criava que chegou a confundir amigos, colegas de trabalho e até colunistas de TV (como este que vos escreve).

Um caso curioso: no final dos anos 90, Loredo fez uma participação extra em "A Praça é Nossa", mas não como Zé Bonitinho. Ele inventou um outro papel para ser entrevistado por Carlos Alberto de Nóbrega no famoso banquinho.

Loredo estava fora do SBT havia alguns dias e chegou à emissora, no então recém-inaugurado Complexo Anhanguera, já encarnado no personagem que gravaria àquela tarde.

Desceu do carro no estacionamento com muita dificuldade e chegou ao estúdio muito lentamente, tremendo e até meio retorcido, simulando uma pessoa doente. A produção ficou meio consternada mas ninguém comentou nada com o ator. Talvez por respeito.

Loredo entrou dessa forma no palco e sentou também com muita dificuldade no banco de Nóbrega, já sob holofotes e câmeras. Apesar da aparência frágil, seu personagem era um velho gabola, muito convencido e seguro de si. Um verdadeiro fanfarrão.

Durante a "entrevista" de Nóbrega, Loredo começou a agitar as mãos, primeiro nervosamente e depois compulsivamente. O ator estava simulando uma pessoa com mal de Parkinson. Chegou um ponto em que até o experiente Nóbrega, surpreso e sem saber o que estava acontecendo de verdade, tentou segurar suas mãos para fazê-lo parar de tremer.

Mas Loredo não saiu do personagem. Nem quando deixou o banco e o palco, com os mesmos tiques e tremeliques com que chegou. Aliás, ele foi embora do SBT ainda do mesmo jeito. Chegaram a ajudá-lo entrar num dos táxis da emissora que o levaria para casa.

Minutos depois e no dia seguinte, boa parte dos funcionários do SBT estava consternada. A notícia se espalhara pelos corredores da emissora como água: Jorge Loredo estava sofrendo de mal de Parkinson.

Na época, eu era colunista de TV do jornal "Folha da Tarde", que foi substituído mais tarde pelo "Agora". Procurei falar com Loredo, mas ele não atendeu o telefone (não havia celulares como hoje). Tampouco ele ligou de volta. Além disso, homem simples, ele não tinha assessores de imprensa ou coisa do tipo.

Só que várias fontes ouvidas no SBT confirmaram a péssima notícia quando eu ligava. A emissora, no entanto, não se pronunciou oficialmente (e fez muito bem, vocês já saberão o porquê).

Os amigos estavam em choque, consternados, tristes.

Acabei publicando uma minúscula nota no dia seguinte em que o programa foi ao ar --uma ou duas semanas depois da gravação.

Citei a tristeza dos funcionários do SBT com a terrível notícia do mal que havia atingido o talentoso ator.

No mesmo dia em que a notinha foi publicada, à tarde, recebi uma ligação na redação. Era Loredo.

Sarcástico, começou a conversa com a seguinte frase:

"Não lhe conheço, mas devia processar o senhor por me desejar e publicar uma doença que eu não tenho. Só não vou processar porque sei que você publicou isso porque é tonto, e eu engano tontos."

Fiquei sem palavras. Quando elas voltaram, gaguejante, expliquei a ele que só publicara a notícia porque seus amigos e colegas de SBT haviam confirmado, que muita gente o tinha visto chegando à emissora e indo embora claudicante, tremendo, doente, que todos estavam arrasados, tristonhos.

Do outro lado da linha (sim, ainda havia linhas), Loredo explodiu em gargalhadas. "Eu devo ser bom mesmo. Estava fazendo um papel e todo mundo acreditou. Que gente tonta. Não se preocupe, colega, vou durar muito tempo ainda. E sem Parkinson, se Deus quiser", disse já desligando. Cabisbaixo, dei um "Erramos" na coluna do dia seguinte.

Do dia em que recebi aquela ligação até hoje, quando morreu, o talentoso Jorge Loredo durou mais 20 anos --boa parte deles com saúde, e jamais com Parkinson.

Mas, por via das dúvidas, como me disse anos mais tarde, quando nos encontramos pessoalmente no SBT, ele nunca mais fez aquele papel de novo.

Ricardo Feltrin

Ricardo Feltrin é colunista do UOL desde 2004. Trabalhou por 21 anos no Grupo Folha, como repórter, editor e secretário de Redação, entre outros cargos.

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